terça-feira, 5 de agosto de 2014

Enquanto fenômeno estético, a existência nos parece sempre suportável e, por meio da arte, nos demos os olhos e as mãos, sobretudo a boa consciência, para poder crer, por nós mesmos, em semelhante fenômeno. É preciso de vez em quando descansarmos de nós próprios, olhando-nos do alto, com uma distância artística, para rir, para chorar sobre nós: é preciso descobrirmos o heroi e também o louco que se escondem em nossa paixão pelo conhecimento; é preciso aqui e acolá sermos felizes com nossa loucura, para podermos continuar felizes com nossa sabedoria. E é precisamente porque somos no fundo homens pesados e sérios, e mais ainda pesos que homens, que nada nos faz mais bem que o capuz dos loucos: temos necessidade dele diante de nós mesmos - temos necessidade de toda arte petulante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e vem-aventurada para não perder essa liberdade que nos coloca acima das coisas e que nosso ideal exige de nós. Seria para nós um recuo cair inteiramente na moral, precisamente com nossa probidade irritável e, por causa das exigências muito severas que nisso temos por nós mesmos, acabar por nos tornarmos nós mesmos monstros e espantalhos de virtude. É preciso também que possamos nos colocar acima da moral: e não somente com a inquieta rigidez daquele que receia a todo o instante resvalar e cair, mas também poder plantar e brincar por cima dela! Como poderíamos para isso dispensar a arte e o louco - E enquanto ainda tiverem vergonha de vocês mesmos, em que quer que seja, não poderão ser dos nossos.

— Nietzsche - "A Gaia Ciência" (Nossa Última Gratidão Para Com a Arte)