sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A estratégia


O urubu sobrevoa a carniça.
O cheiro fétido penetra em seus sentidos, já podres.
Quanto mais sujo, estragado, sórdido, obsceno,
Mais suculenta é a caçada.
A estratégia é, então, cuidadosamente traçada
E o mergulho, absurdamente preciso
Mesmo em face dos companheiros do bando,
Do pacto, do compromisso.
Nem baratas, nem ratos, nem bichos escrotos
Ao som da infausta e pavorosa batida
A estratégia é mergulhar na carne
No sangue velho e apodrecido
E arrancar dele
Tudo o que um dia já foi vida.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012




Mas quando chega o tempo da invernada
No Sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará pega, mata e come.

sábado, 18 de agosto de 2012

Rafael - "São Jorge e o Dragão"

Melhor do que se abster de quaisquer escudos e proteções,
é apegar-se a todos
controversos, incoerentes,
místicos,
irracionalmente.

Para arquivar: Essa conversa não é sobre você

Querido estudante branco, de classe média, que faz cursinho pré-vestibular particular: eu sei que é difícil quando alguém nos faz enxergar nossos próprios privilégios, mas deixa eu tentar mais uma vez.

Eu (e mais uma penca de gente, me arrisco a dizer) não me importo com o quão “difícil” será para você entrar naquele curso de medicina mega concorrido com o qual você sonha, porque, simplesmente, esta conversa não é sobre você.

Eu sei que praticamente todas as conversas deste mundo são sobre você e você está acostumado com isso, então deve ser um baque não ser o centro das atenções. Mas, seja forte! É verdade: nós não estamos falando sobre você.

Quando você chora pelo sonho que agora parece mais distante de se realizar, suas lágrimas não me comovem. Porque o que me comove são as lágrimas daqueles que nascem e crescem sem qualquer perspectiva para alimentar o mesmo sonho que você. É sobre essas pessoas que estamos falando e não sobre você.

Quando você esperneia pelos mil reais gastos todos os meses com a mensalidade do seu cursinho e que agora se revelam “inúteis”, eu não me comovo. Porque o que me comove são as milhares de famílias inteiras que se sustentam durante um mês com metade da quantia gasta em uma dessas mensalidades. É sobre essas pessoas que estamos falando, não sobre você.

Quando você argumenta que, na verdade, seus pais só pagam seu cursinho porque trabalham muito ou porque você ganhou um desconto pelas boas notas que tira, eu não me comovo. Porque o que me comove são as pessoas realmente pobres, que mesmo trabalhando muito mais do que os seus pais, ainda assim não podem dispor de dinheiro nem para comprar material escolar para os filhos, quem dirá uma mensalidade escolar por mais barata que seja. É sobre essas pessoas que estamos falando, não sobre você.

Quando você muito benevolente até admite que alunos pobres tenham alguma vantagem, mas acredita ser racismo conceder cotas para negros ou outros grupos étnicos eusa até os dois negros que você conhecem que conseguiram entrar numa universidade pública sem as cotas, como exemplo de que a questão é puramente econômica e não racial, eu não me comovo. Na verdade, eu sinto uma leve vontade de desistir da raça humana, eu confesso, mas só para manter o estilo do texto eu preciso dizer que o que me comove é olhar para o restante da sala de aula onde esses dois negros que você citou estudam e ver que os outros 48 alunos são brancos. E olhar para as estatísticas que mostram a composição étnica da população brasileira e contatar a abissal diferença dos números. É sobre os negros que não estão nas universidades que estamos falando, não sobre você ou seus amigos.

Se a coisa está tão ruim, que tal propormos uma coisa: troque de lugar com algum aluno de escola pública. Já que não é possível trocar a cor da sua pele, pague, pelo menos, a mensalidade para que ele estude na sua escola e se mude para a dele. Ou, seja a cobaia da sua própria teoria. Já que você acredita que a única ação que deveria ser proposta é melhorar a educação básica: peça para o seu pai investir o dinheiro dele em alguma escola, entre nela gratuitamente junto com alguns outros alunos, estude nela durante 12 anos e então volte a tentar o vestibular. Ah, você não pode esperar tanto tempo? Então, porque os negros e pobres podem esperar até mais, já que todos sabemos que o problema da má qualidade da educação básica no Brasil não é algo que pode ser resolvido de ontem pra hoje?

Então, por favor, reconheça o seu privilégio branco e classe média e tire ele do caminho, porque essa conversa não é sobre você. Já existem espaços demais no mundo que têm a sua figura como estrela principal, já passou da hora de mais alguém nesse mundo brilhar.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

[o que o barro quer]

o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer


[Leminski]

domingo, 15 de julho de 2012

"Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" 

[Teun A. van Dijk]

sábado, 14 de julho de 2012

Caravaggio - "Davi com a cabeça de Golias"
Um gigante monstruoso, de faces abomináveis, herói dos filisteus e maldoso em sua essência desumana. 
Golias, o grande monstro de quase três metros, com faces grotescas e risada aterrorizante.
Morto, por uma pedrada simples e precisa, por quem estava praticamente desarmado, por alguém que julgava-se munido apenas de .
Não obstante seu escudo forte e sua lança afiada, Golias sucumbe, e sua cabeça é levada à Jerusalém.

Como compreender a intenção de Caravaggio, ao representar sua própria face na imagem de Golias, o monstruoso gigante? 

A própria face, numa expressão perversamente barroca, distorcida e enfatizada pelo jogo de luz e sombra, chiaroscuro, hipnotizante, dramaticamente representada em uma expressão de perversidade e rendição. Ele, ele próprio, em um auto-retrato de seu próprio espírito. Expondo-se em sua mais clara e límpida representação. 

Uma existência conflituosa, emaranhada em sentimentos confusos e intranscritíveis. Possivelmente, apenas representáveis em uma arte essencialmente desfigurante, conceitualmente torta, barroca. Uma arte encomendada para emoldurar as mais sacramentadas catedrais. Elaborada, no entanto, através de um realismo brutal e pouco celestial.

Caravaggio utilizava-se de rostos comuns, encontrados nas praças, nas ruas, nos prostíbulos, para representar seus anjos e madonas. Maria, mãe de Cristo, tinha a face de qualquer prostituta. Os anjos, de qualquer pequeno mendigo. E ele, ele próprio, a face de um monstro.

A complexa impureza do barroco, seu jogo de claro-escuro, sua deformidade e pretenso realismo. A representação mais clara de si mesmo, de seu espírito e sua essência, numa imagem assombrada de quem conseguiu finalmente definir-se.
Do seu próprio modo.




terça-feira, 3 de julho de 2012

Toulouse-Lautrec

E, de repente, mostra-se como um todo honesto
Em sua bruta e rasgante anti-sociabilidade
Vestindo-se, portando-se, gargalhando(-se)
Num grito forte
Contra tudo
E contra si mesma.
Como se fosse esta a única saída
Que o sentimento encontra para se tornar visível.
[...]
Digo adeus à ilusão
Mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos
um artefato, um poema,
uma bandeira.

[Ferreira Gullar, Agosto 1964]

quinta-feira, 28 de junho de 2012


E então, em um belo dia de sol, Vênus saiu da concha e nasceu.
 "Era preciso que eu soubesse respeitar essa liberdade. Sentia o meu carinho atacado violentamente, mas havia a imensa gratidão pela brutalidade da franqueza. Ainda hoje o meu agradecimento vai para o homem que nunca me ofendeu com a piedade".

[Pagu, sobre Oswald de Andrade, seu então marido, com o qual mantinha um relacionamento aberto, sem cobranças e sem juizos morais, com, todavia, um sentimento de tristeza pelo desprezo com o qual se voltava para ela, sendo profundamente sincero sobre suas aventuras sexuais].

terça-feira, 26 de junho de 2012

Através de pensamentos e de certezas construídas no presente, as lembranças devem ser cuidadosamente relidas e interpretadas. Como a releitura de um conto infantil, anos depois. Como a observação de uma tela a uma distância maior. As pinceladas confusas parecem um todo harmonioso se contempladas de longe. Assim pode surgir algum sentido. Como em um Monet.

domingo, 29 de abril de 2012

POR QUE INCOMODA TANTO A NOSSA AUTONOMIA?


Eu não consigo entender
Essa tal filosofia
Que me impede de fazer
Aquilo que eu pretendia
Que me chama de bandida,
Que me deixa oprimida,
Que me nega autonomia.

Sou uma mulher muito forte
Vivo a vida dirigindo
E assuntos de toda sorte,
Estou sempre decidindo.
Só que quando é sobre mim,
Sobre meu corpo e meu fim
Há o mundo me impedindo.

Eu custei a entender
Que a liberdade é negada
A toda e qualquer mulher
Que não quer ser sujeitada
Que abre a boca e grita
Que ‘nunca será bandida’
Por uma decisão tomada.

Já fui criminalizada
Tive a face apedrejada
Só por tentar exercer
O direito que penso ter
De cessar minha gravidez
De modo seguro e cortês
Sem ser presa nem morrer.

Mas não há cidadania
Há apenas sujeição
Pra aquela que contraria
Moral e religião
É como se a biologia
Fosse a ideologia
Que embasa a Criação.

Minhas companheiras morreram
Em abortos clandestinos
E se não tivessem partido
Quais seriam seus destinos?
A morte de coração
Dentro de qualquer prisão
Por julgamentos divinos.

Nós, mulheres, precisamos
Pensar coletivamente
Que a guerra que enfrentamos
No passado e no presente
É o quadro cultural
Machista e patriarcal
Que ainda é evidente

Quero poder decidir
Sobre minha vida e meu corpo
Ter liberdade de agir
De optar pelo aborto
De modo decente e seguro
Sem estar em cima do muro
E sem ver o meu corpo morto.

Exijo dignidade
Poder ter cidadania
Tendo a possibilidade
De uma existência sadia
Mas me pergunto, num canto,
Por que incomoda tanto
A nossa autonomia?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Visto a fantasia de Pierrot, no tom das tintas de Picasso, tento existir até a última pincelada. O que tem que ser feito, o que tem que ser vivido, o que é preciso para cantar. Mesmo que não se faça presente qualquer espécie de compreensão. A dor precisa ser escondida sob panos e cores, tintas e brilhos. Num samba embalado por tambores altos, num giro rasgante, veloz e confuso, sob um mar de pensamentos que se chocam e rodopiam, chacoalhando entre  serpentinas, letras, suores, dores, remédios, sorrisos. A culpa pelo tempo perdido se mistura com a sensação de 'ao menos isso', mesmo que os confetes jogados sejam difíceis de limpar. As cores de Picasso se entrecruzam, e misturam, ao mesmo tempo, tristeza, melancolia e frustração. 
Mas é carnaval. 
Amanhã tudo volta ao normal.
eu sou seresteiro, poeta e cantor
o meu tempo inteiro
só zombo do amor.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

E sendo assim, a vida, uma corrida incessante,
Os planos atropelam-se pelo acelerar dos instantes
E o que resta é uma sobrevida desprovida de sentido
Que antes que se tome consciência
Já acabou o dia.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

como essa incongruência toda já foi um dia encanto?
um gato que late,
uma letra de sopinhas,
uma lanterna sombria,
um cano efervescente,
um jardim de raízes.
a cada instante, o ressoar dos sinos é certeiro:
está próximo.
a insistência é angustiante
e parece que não quero ouvir o badalo
quero apenas dançar ao som dos sinos sinistros.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

sabe quando já é 3 de janeiro e seu ano passado ainda não terminou?